Liberdade
A palavra
liberdade, eleutheria, conforme a etimologia grega, significava liberdade de
movimento. Tratava-se de uma possibilidade do corpo, não considerada como um
dado da consciência ou do espírito.
Liberdade também teve como significado ausência de limitações e coações. A palavra alemã Freiheit (liberdade) tem origem histórica nos vocábulos freihals ou frihals. Ambos significavam “pescoço livre” (frei Hals), livre dos grilhões mantidos nos escravos.
Na Antigüidade, a liberdade era uma qualidade do cidadão, do homem considerado livre na estrutura da polis. A expressão da liberdade era sobretudo política. Estava mais próxima do status libertatis, adquirido entre privilégios estamentais. Os antigos não conheciam a liberdade individual como autonomia ou determinação.
Poder e liberdade eram palavras praticamente sinônimas. Compreendia-se a liberdade como o poder de se movimentar sem impedimentos, seja em razão da debilidade do corpo, seja em razão da necessidade ou mesmo em razão do impedimento oposto por ordem de um senhor. O “eu posso” era mais representativo do que o “eu quero”.
O acréscimo da liberdade com um dado da consciência pode ser historicamente visualizado com a descoberta da interioridade humana, região íntima responsável por determinar o modo de ser de cada um e a projeção que cada qual tem para o seu futuro.
Muito tempo se passou até que a liberdade deixasse de indicar um status político, ou uma circunstância aleatória de não impedimento e passasse a incorporar em seu significado uma disposição interior, uma qualidade íntima que prescindia do agir, um querer desvinculado do poder.
Essa liberdade estática, impermeável a toda influência externa, esteve presente no pensamento filosófico, intimamente associada à idéia de vontade. São Paulo enfatizava a impotência da vontade ao afirmar que “eu não faço o que quero, faço exatamente o que odeio”. Santo Agostinho traduziu a idéia de que é possível querer o que não se pode fazer e é possível que se faça o que não se quer. Mesmo ausente qualquer impedimento externo, era possível querer e ao mesmo tempo ser incapaz de realizar o que se queria. Samuel von Pufendorf (1632-1694), no século XVII, distinguia ações internas de ações externas. O que ficava guardado no coração interessava apenas à religião. Christian Thomasius (1655-1728), no começo do século XVIII, estabelecia diferenças entre “foro íntimo” e “foro externo”, de forma a diferenciar moral de direito. Para Thomas Hobbes (1588–1679), liberdade e obrigação eram incompatíveis. Immanuel Kant (1724-1804), no final do século XVIII, entendeu a liberdade como liberdade de consciência. Para seu resguardo, somente a conduta exteriorizada estaria sujeita a coibições.
No Iluminismo, a liberdade de consciência ganhou importância no campo político. Transpareceu o paradoxo de se admitir que um Estado fundado na inviolabilidade da personalidade exercesse coação sobre os cidadãos para que agissem de forma contrária às suas consciências. Várias fórmulas foram idealizadas para contornar o conflito.
Jean-Jacques? Rousseau (1712-1778), por exemplo, considerando a interioridade, definiu a liberdade como dever de obediência às próprias leis. Ao participar da criação da vontade da lei, a vontade geral substituía a vontade individual. A liberdade como autonomia e autodeterminação passou a ser considerada como um dado político, fundacional do Estado. A liberdade começou a existir no Estado, e apenas nele, conforme aquilo que foi pactuado. O resultado foi a perda da dimensão individual da liberdade. A vida não era mais considerada uma dádiva da natureza, era um dom concedido pelo Estado.
A reconciliação entre liberdade e obediência foi sintetizada por Georg Hegel (1770–1831). A partir deste filósofo, o homem foi compreendido em seu contexto social. Com a formulação de uma consciência objetiva geral, contraposta à subjetividade individual, Hegel entendeu a liberdade no plano objetivo, liberdade concreta, integrada ao interesse geral, orientada pela ética e pelas normas jurídicas. Nesta concepção dinâmica, é livre quem reconhece a lei e a segue como substância do seu próprio ser. A liberdade é condicionada pelos interesses coletivos.
Tal fórmula não permitia a exteriorização de um querer não objetivado. A consciência, especificidade subjetiva, não tinha realidade no âmbito estatal. Valia a fórmula de que a liberdade consiste em fazer o que devemos querer.
Benjamin Constant (1767-1830) contextualizou duas concepções de liberdade, considerando fatores externos e internos que a determinam: a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos.
Enquanto a liberdade dos antigos era desdobramento da confluência entre religião e política, a liberdade dos modernos foi considerada a partir da dissociação de ambas. Ao mesmo tempo em que os antigos podiam decidir sobre a paz e a guerra, julgar magistrados e superiores, eram, em contraste, no plano privado, submetidos a vigilância severa. E, sem liberdade de crença, opinião ou ação, sujeitavam-se à autoridade do conjunto. Despojados da dignidade, podiam ser banidos ou condenados à morte. A liberdade dos modernos, de seu lado, foi considerada como autonomia, para impedir a vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos sobre uma individualidade. Foi focalizada para estabelecer limites de interferência do Estado na vida individual. Em desdobramento, reconheceu-se um direito individual de se submeter apenas à lei, de não ser preso, morto ou maltratado.
Outra classificação, essencial para a compreensão da liberdade, foi concebida a partir da teoria do status, desenvolvida no final do século XIX por Georg Jellinek (1851-1911). Ao considerar, de forma simplificada, uma teoria analítica das situações do indivíduo perante o Estado, Jellinek considerou quatro situações: o status subiectiones (passivo), correspondente à situação de absoluta submissão dos indivíduos ao Estado, em razão dos deveres a eles impostos; o status negativus (status libertatis), estado de liberdade natural, esfera de liberdade individual onde não se permite intervenção do Estado; o status positivus ou status civitatis que consiste na capacidade de exigir do Estado prestações positivas conforme o interesse individual e, em complemento, o status de cidadania ativa, consistente na capacidade de votar leis, de integrar órgãos públicos e de participar na formação da vontade estatal.
O status subjectiones e o status libertatis foram considerados em linha direta, ou seja, de forma que a ampliação do âmbito dos deveres implicava redução do âmbito de liberdades. Ou existia sujeição ou existia liberdade. Sem composição entre as duas esferas, o espaço concedido à liberdade poderia ser pouco ou nenhum.
A imposição de deveres, resultantes do status subjectiones e do status civitatis, acabava por neutralizar ou anular o status libertatis. A estrutura foi caracterizada por Niklas Luhmann (1927-1999) como “zwar-aber”. O homem é livre, mas deve respeitar o direito dos outros. Tem autonomia, mas é obrigado a conformá-la segundo a perspectiva social.
Doutrinas mais recentes tendem a incrementar, sob perspectiva dinâmica, a compreensão das situações ativa e passiva do indivíduo frente ao Estado, procurando situá-lo no tempo e espaço em que vive, reconhecendo-lhe aptidão para consentir e dissentirem
interação. A liberdade não é transcendente, deve ser
vivenciada pelo homem situado em seu tempo.
Peter Häberle (1934- ) acrescentou à teoria do status de Jellinek, o status activus processualis, um reforço dado à liberdade individual frente aos interesses coletivos. O procedimento aparece como direito fundamental diferenciado, que é, ao mesmo tempo, garantia de liberdade e limitador do poder estatal. Projeta-se na ordem jurídica como proteção antecipada de direitos e liberdades, capaz de garantir posicões em que a autodeterminação e a liberdade de vontade são relevantes. O procedimento funciona como fórmula extensora do espaço de liberdade ameaçado quando do exercício das funções prestacionais do Estado.
Nas declarações de direitos do século XVIII, predominaram as liberdades negativas, correspondentes a deveres de abstenção por parte do Estado. Enfatizava-se a autonomia moral do indivíduo. Refletiu o significado desta liberdade a expressão “aquilo que não for obrigatório, nem proibido, delimita o que é lícito e, portanto, permitido”.
Após a Primeira Guerra Mundial, as Constituições, legislações e declarações de direitos, no plano internacional, incorporaram duplicidade de direitos: direitos, garantias e liberdades, de um lado, e direitos sociais de outro.
As Constituições contemporâneas deram ênfase à liberdade positiva, condicionada à intervenção do poder público, concebida para realização de fins públicos, objetivos predeterminados pelo Estado. Tal liberdade foi pensada como garantia de condições para o desenvolvimento do potencial humanoem sociedade. A garantia
de eficácia de direitos e liberdades tem como corolário a inflição de deveres
ao indivíduo, tanto de abstenção de condutas como de realização de conduta
determinada.
O conflito entre autonomia e obediência foi revitalizado. A idéia de coletivização dos direitos individuais ou de publicização de suas garantias, desvinculada da compreensão da liberdade de consciência, autonomia e autodeterminação, acaba por padronizar anseios pessoais e ocultar perspectivas individuais, o que faz prevalecer um direito padronizado a prestações positivas por parte do Estado, uma rede de tutelas e deveres que se sobrepõe à esfera de determinação subjetiva.
No âmbito de cada nação, tem sido discutida com freqüência a necessidade de se reconhecer autonomia individual e capacidade para fazer valer direitos (status activus processualis), garantindo-se informação, participação, impugnação de decisões e de atos lesivos à liberdade, a toda pessoa, independentemente de qualidades pessoais, tais como raça, sexo, idade, nacionalidade e da situação jurídica em que se encontre. Tudo isso, a fim de que a compreensão do ser humano na sua individualidade seja revigorada. O aspecto subjetivo da liberdade, muitas vezes neutralizado, subestimado e não materializado quando a liberdade é concebida em termos coletivos, deve ser necessariamente enfatizado.
A história traz exemplos de que a liberdade teve como conteúdo tanto a tirania do mais forte sobre o mais fraco como o aniquilamento de uma minoria pela maioria. Não é apenas no âmbito da licitude e da tutela jurídica que se reconstrói a história da liberdade. A luta pela liberdade é visualizada, também, na constatação da ausência de liberdade. Interessa não só a liberdade permitida, mas também aquela coibida no seu exercício. Assim, o oposto da liberdade e as garantias para que a liberdade seja usufruída integram, também, a temática da liberdade.
Situações complexas, nas quais o indivíduo precisa da força estatal para remover obstáculos e fazer valer sua liberdade perante outra pessoa, grupos sociais ou mesmo contra o próprio Estado, devem ser consideradas como problemas jurídicos quando da conformação dos mecanismos de tutela da liberdade, tanto no âmbito jurídico de cada Estado como na ordem jurídica internacional.
A discussão sobre a liberdade segue caminhos tortuosos, em movimentos nunca estabilizados. Não é questão acabada. Há dificuldade de delimitação entre a liberdade entendida como não impedimento e a liberdade entendida como expressão da vontade comum. Ambas não prescindem da autonomia e capacidade de autodeterminação. Daí a dificuldade de determinação do âmbito de proteção, de tutela da liberdade. Preocupações existem quanto à preservação da liberdade de ação subjetiva, segundo valores e interesses próprios, um espaço que a ninguém cabe interferir. Outro questionamento fundamental diz com fórmulas invasivas de proteção. Até que ponto e sob quais fundamentos controles, condicionamentos e manipulações podem ser utilizados para impelir o fazer e influenciar no modo de ser?
Sugestões para leitura:
Alexy, Robert, Teoría de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
Arendt , Hannah, A Vida do Espírito (o pensar, o querer, o julgar), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
Berlin, Isaiah, Due concetti di libertà. La libertà politica, Edizione di comunità, 1974.
Bobbio, Norberto, Della libertà dei moderni comparata a quella dei posteri, La libertà politica, Edizione di comunità, 1974.
Böckenförde, Ernst-Wolfgang?, Escritos sobre Derechos Fundamentales, Nomos Verlagsgesellschaft, Baden-Baden?, 1993.
Dahrendorf, Ralf, O futuro da liberdade, Brasília, UNB.
Ferraz, Tércio Sampaio, Direito e liberdade, Estudos de filosofia do direito (reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito), São Paulo: Atlas, 2002.
Habermas, Jürgen, Droit et Democratie. Entre Faits et Normes, Paris: Gallimard, 1997.
Häberle, Peter, Pluralismo y Constitución. Estudios dela Teoría Constitucional
de la sociedad abierta, Madrid, Tecnos, 2002.
Johanbegloo, Ramin, Isaiah Berlin: com toda liberdade, Editora Perspectiva, Coleção Debates, 1996.
Kaufman, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian .
Lafer, Celso, Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 1980.
Luhmann, Niklas, Grundrechte als Institution. Ein Beitrage zur politischen Sociologie, Berlin: Duncker & Humblot, 1999.
Perticone, Giacomo, Libertà (filosofia del diritto), Novissimo Digesto Italiano, T IX, 1963, p. 842/844.
Zippelius, Reinhold, Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1997.
Geórgia Bajer Fernandes de Freitas Porfírio
Advogada
Mestre em direito processual pela Universidade de São Paulo, com equivalência de grau reconhecida pela Universidade de Lisboa
Autora de "A tutela da liberdade no processo penal", Malheiros, São Paulo, 2005
Co-autora de "Nulidades no processo penal", 5ª ed., Malheiros, São Paulo, 2002.
Liberdade também teve como significado ausência de limitações e coações. A palavra alemã Freiheit (liberdade) tem origem histórica nos vocábulos freihals ou frihals. Ambos significavam “pescoço livre” (frei Hals), livre dos grilhões mantidos nos escravos.
Na Antigüidade, a liberdade era uma qualidade do cidadão, do homem considerado livre na estrutura da polis. A expressão da liberdade era sobretudo política. Estava mais próxima do status libertatis, adquirido entre privilégios estamentais. Os antigos não conheciam a liberdade individual como autonomia ou determinação.
Poder e liberdade eram palavras praticamente sinônimas. Compreendia-se a liberdade como o poder de se movimentar sem impedimentos, seja em razão da debilidade do corpo, seja em razão da necessidade ou mesmo em razão do impedimento oposto por ordem de um senhor. O “eu posso” era mais representativo do que o “eu quero”.
O acréscimo da liberdade com um dado da consciência pode ser historicamente visualizado com a descoberta da interioridade humana, região íntima responsável por determinar o modo de ser de cada um e a projeção que cada qual tem para o seu futuro.
Muito tempo se passou até que a liberdade deixasse de indicar um status político, ou uma circunstância aleatória de não impedimento e passasse a incorporar em seu significado uma disposição interior, uma qualidade íntima que prescindia do agir, um querer desvinculado do poder.
Essa liberdade estática, impermeável a toda influência externa, esteve presente no pensamento filosófico, intimamente associada à idéia de vontade. São Paulo enfatizava a impotência da vontade ao afirmar que “eu não faço o que quero, faço exatamente o que odeio”. Santo Agostinho traduziu a idéia de que é possível querer o que não se pode fazer e é possível que se faça o que não se quer. Mesmo ausente qualquer impedimento externo, era possível querer e ao mesmo tempo ser incapaz de realizar o que se queria. Samuel von Pufendorf (1632-1694), no século XVII, distinguia ações internas de ações externas. O que ficava guardado no coração interessava apenas à religião. Christian Thomasius (1655-1728), no começo do século XVIII, estabelecia diferenças entre “foro íntimo” e “foro externo”, de forma a diferenciar moral de direito. Para Thomas Hobbes (1588–1679), liberdade e obrigação eram incompatíveis. Immanuel Kant (1724-1804), no final do século XVIII, entendeu a liberdade como liberdade de consciência. Para seu resguardo, somente a conduta exteriorizada estaria sujeita a coibições.
No Iluminismo, a liberdade de consciência ganhou importância no campo político. Transpareceu o paradoxo de se admitir que um Estado fundado na inviolabilidade da personalidade exercesse coação sobre os cidadãos para que agissem de forma contrária às suas consciências. Várias fórmulas foram idealizadas para contornar o conflito.
Jean-Jacques? Rousseau (1712-1778), por exemplo, considerando a interioridade, definiu a liberdade como dever de obediência às próprias leis. Ao participar da criação da vontade da lei, a vontade geral substituía a vontade individual. A liberdade como autonomia e autodeterminação passou a ser considerada como um dado político, fundacional do Estado. A liberdade começou a existir no Estado, e apenas nele, conforme aquilo que foi pactuado. O resultado foi a perda da dimensão individual da liberdade. A vida não era mais considerada uma dádiva da natureza, era um dom concedido pelo Estado.
A reconciliação entre liberdade e obediência foi sintetizada por Georg Hegel (1770–1831). A partir deste filósofo, o homem foi compreendido em seu contexto social. Com a formulação de uma consciência objetiva geral, contraposta à subjetividade individual, Hegel entendeu a liberdade no plano objetivo, liberdade concreta, integrada ao interesse geral, orientada pela ética e pelas normas jurídicas. Nesta concepção dinâmica, é livre quem reconhece a lei e a segue como substância do seu próprio ser. A liberdade é condicionada pelos interesses coletivos.
Tal fórmula não permitia a exteriorização de um querer não objetivado. A consciência, especificidade subjetiva, não tinha realidade no âmbito estatal. Valia a fórmula de que a liberdade consiste em fazer o que devemos querer.
Benjamin Constant (1767-1830) contextualizou duas concepções de liberdade, considerando fatores externos e internos que a determinam: a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos.
Enquanto a liberdade dos antigos era desdobramento da confluência entre religião e política, a liberdade dos modernos foi considerada a partir da dissociação de ambas. Ao mesmo tempo em que os antigos podiam decidir sobre a paz e a guerra, julgar magistrados e superiores, eram, em contraste, no plano privado, submetidos a vigilância severa. E, sem liberdade de crença, opinião ou ação, sujeitavam-se à autoridade do conjunto. Despojados da dignidade, podiam ser banidos ou condenados à morte. A liberdade dos modernos, de seu lado, foi considerada como autonomia, para impedir a vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos sobre uma individualidade. Foi focalizada para estabelecer limites de interferência do Estado na vida individual. Em desdobramento, reconheceu-se um direito individual de se submeter apenas à lei, de não ser preso, morto ou maltratado.
Outra classificação, essencial para a compreensão da liberdade, foi concebida a partir da teoria do status, desenvolvida no final do século XIX por Georg Jellinek (1851-1911). Ao considerar, de forma simplificada, uma teoria analítica das situações do indivíduo perante o Estado, Jellinek considerou quatro situações: o status subiectiones (passivo), correspondente à situação de absoluta submissão dos indivíduos ao Estado, em razão dos deveres a eles impostos; o status negativus (status libertatis), estado de liberdade natural, esfera de liberdade individual onde não se permite intervenção do Estado; o status positivus ou status civitatis que consiste na capacidade de exigir do Estado prestações positivas conforme o interesse individual e, em complemento, o status de cidadania ativa, consistente na capacidade de votar leis, de integrar órgãos públicos e de participar na formação da vontade estatal.
O status subjectiones e o status libertatis foram considerados em linha direta, ou seja, de forma que a ampliação do âmbito dos deveres implicava redução do âmbito de liberdades. Ou existia sujeição ou existia liberdade. Sem composição entre as duas esferas, o espaço concedido à liberdade poderia ser pouco ou nenhum.
A imposição de deveres, resultantes do status subjectiones e do status civitatis, acabava por neutralizar ou anular o status libertatis. A estrutura foi caracterizada por Niklas Luhmann (1927-1999) como “zwar-aber”. O homem é livre, mas deve respeitar o direito dos outros. Tem autonomia, mas é obrigado a conformá-la segundo a perspectiva social.
Doutrinas mais recentes tendem a incrementar, sob perspectiva dinâmica, a compreensão das situações ativa e passiva do indivíduo frente ao Estado, procurando situá-lo no tempo e espaço em que vive, reconhecendo-lhe aptidão para consentir e dissentir
Peter Häberle (1934- ) acrescentou à teoria do status de Jellinek, o status activus processualis, um reforço dado à liberdade individual frente aos interesses coletivos. O procedimento aparece como direito fundamental diferenciado, que é, ao mesmo tempo, garantia de liberdade e limitador do poder estatal. Projeta-se na ordem jurídica como proteção antecipada de direitos e liberdades, capaz de garantir posicões em que a autodeterminação e a liberdade de vontade são relevantes. O procedimento funciona como fórmula extensora do espaço de liberdade ameaçado quando do exercício das funções prestacionais do Estado.
Nas declarações de direitos do século XVIII, predominaram as liberdades negativas, correspondentes a deveres de abstenção por parte do Estado. Enfatizava-se a autonomia moral do indivíduo. Refletiu o significado desta liberdade a expressão “aquilo que não for obrigatório, nem proibido, delimita o que é lícito e, portanto, permitido”.
Após a Primeira Guerra Mundial, as Constituições, legislações e declarações de direitos, no plano internacional, incorporaram duplicidade de direitos: direitos, garantias e liberdades, de um lado, e direitos sociais de outro.
As Constituições contemporâneas deram ênfase à liberdade positiva, condicionada à intervenção do poder público, concebida para realização de fins públicos, objetivos predeterminados pelo Estado. Tal liberdade foi pensada como garantia de condições para o desenvolvimento do potencial humano
O conflito entre autonomia e obediência foi revitalizado. A idéia de coletivização dos direitos individuais ou de publicização de suas garantias, desvinculada da compreensão da liberdade de consciência, autonomia e autodeterminação, acaba por padronizar anseios pessoais e ocultar perspectivas individuais, o que faz prevalecer um direito padronizado a prestações positivas por parte do Estado, uma rede de tutelas e deveres que se sobrepõe à esfera de determinação subjetiva.
No âmbito de cada nação, tem sido discutida com freqüência a necessidade de se reconhecer autonomia individual e capacidade para fazer valer direitos (status activus processualis), garantindo-se informação, participação, impugnação de decisões e de atos lesivos à liberdade, a toda pessoa, independentemente de qualidades pessoais, tais como raça, sexo, idade, nacionalidade e da situação jurídica em que se encontre. Tudo isso, a fim de que a compreensão do ser humano na sua individualidade seja revigorada. O aspecto subjetivo da liberdade, muitas vezes neutralizado, subestimado e não materializado quando a liberdade é concebida em termos coletivos, deve ser necessariamente enfatizado.
A história traz exemplos de que a liberdade teve como conteúdo tanto a tirania do mais forte sobre o mais fraco como o aniquilamento de uma minoria pela maioria. Não é apenas no âmbito da licitude e da tutela jurídica que se reconstrói a história da liberdade. A luta pela liberdade é visualizada, também, na constatação da ausência de liberdade. Interessa não só a liberdade permitida, mas também aquela coibida no seu exercício. Assim, o oposto da liberdade e as garantias para que a liberdade seja usufruída integram, também, a temática da liberdade.
Situações complexas, nas quais o indivíduo precisa da força estatal para remover obstáculos e fazer valer sua liberdade perante outra pessoa, grupos sociais ou mesmo contra o próprio Estado, devem ser consideradas como problemas jurídicos quando da conformação dos mecanismos de tutela da liberdade, tanto no âmbito jurídico de cada Estado como na ordem jurídica internacional.
A discussão sobre a liberdade segue caminhos tortuosos, em movimentos nunca estabilizados. Não é questão acabada. Há dificuldade de delimitação entre a liberdade entendida como não impedimento e a liberdade entendida como expressão da vontade comum. Ambas não prescindem da autonomia e capacidade de autodeterminação. Daí a dificuldade de determinação do âmbito de proteção, de tutela da liberdade. Preocupações existem quanto à preservação da liberdade de ação subjetiva, segundo valores e interesses próprios, um espaço que a ninguém cabe interferir. Outro questionamento fundamental diz com fórmulas invasivas de proteção. Até que ponto e sob quais fundamentos controles, condicionamentos e manipulações podem ser utilizados para impelir o fazer e influenciar no modo de ser?
Sugestões para leitura:
Alexy, Robert, Teoría de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
Arendt , Hannah, A Vida do Espírito (o pensar, o querer, o julgar), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
Berlin, Isaiah, Due concetti di libertà. La libertà politica, Edizione di comunità, 1974.
Bobbio, Norberto, Della libertà dei moderni comparata a quella dei posteri, La libertà politica, Edizione di comunità, 1974.
Böckenförde, Ernst-Wolfgang?, Escritos sobre Derechos Fundamentales, Nomos Verlagsgesellschaft, Baden-Baden?, 1993.
Dahrendorf, Ralf, O futuro da liberdade, Brasília, UNB.
Ferraz, Tércio Sampaio, Direito e liberdade, Estudos de filosofia do direito (reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito), São Paulo: Atlas, 2002.
Habermas, Jürgen, Droit et Democratie. Entre Faits et Normes, Paris: Gallimard, 1997.
Häberle, Peter, Pluralismo y Constitución. Estudios de
Johanbegloo, Ramin, Isaiah Berlin: com toda liberdade, Editora Perspectiva, Coleção Debates, 1996.
Kaufman, Arthur, A problemática da filosofia do direito ao longo da história, Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian .
Lafer, Celso, Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 1980.
Luhmann, Niklas, Grundrechte als Institution. Ein Beitrage zur politischen Sociologie, Berlin: Duncker & Humblot, 1999.
Perticone, Giacomo, Libertà (filosofia del diritto), Novissimo Digesto Italiano, T IX, 1963, p. 842/844.
Zippelius, Reinhold, Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1997.
Geórgia Bajer Fernandes de Freitas Porfírio
Advogada
Mestre em direito processual pela Universidade de São Paulo, com equivalência de grau reconhecida pela Universidade de Lisboa
Autora de "A tutela da liberdade no processo penal", Malheiros, São Paulo, 2005
Co-autora de "Nulidades no processo penal", 5ª ed., Malheiros, São Paulo, 2002.
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