quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

DIFERENÇA ENTRE PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA.

PRESCRIÇÃO:  é a perda da pretensão (de reivindicar esse direito por meio da ação judicial cabível);

DECADÊNCIA: é a perda do direito em si por não ter sido exercido num período de tempo razoável.

Uma vez operada a prescrição ou a decadência, a conseqüência jurídica, via de regra, será a mesma, qual seja, a impossibilidade de exercitar um direito.



Dever de Mitigar


O Direito Civil e suas inovações: Duty to Mitigate the Loss - Dever de Mitigar

blogprofessorgeraldo.blogspot.com

Publicado no Jornal Jurídico, dia 30 de janeiro de 2013. (http//jornal.jurid.com.br)

O presente artigo versa esclarecer o que vem a ser o duty to mitigate ou dever de mitigar, instituto do direito norte-americano que vem sendo utilizado pelos nossos doutrinadores e pela jurisprudência pátria no momento de verificar a forma e o quantum indenizatório. Para a compreensão desse instituto faz-se necessário inseri-lo nos princípios filosóficos do novo código civil, bem como no novo significado do direito contratual

Introdução

O nosso ordenamento jurídico encontra-se sendo reescrito e reinterpretado, após o advento da constituição federal de 1988, após o novo Código Civil, mas o marco maior, com certeza e a importância que foi dada ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana em todas as suas esferas.

Assim, as relações mesmo privadas, não estão dissociadas de nosso ordenamento jurídico e para serem consideradas válidas precisam estar em conformidade com as normas existentes.

Para compreendermos o duty to mitigate the loss, ou dever de indenizar, faz-se necessário primeiro relembrarmos a essência do nosso Código Civil e ainda, de forma específica o princípio da boa-fé objetiva.

1. Os princípios filosóficos do Código Civil

Rompendo com a estrutura do Código Civil de 1916, conforme o Professor Miguel Reale, a nova codificação inspirou-se em três princípios filosóficos: socialidade, eticidade e operabilidade.

O Princípio da Socialidade: Seguindo assim a tendência moderna, acolhe-se a prevalência do coletivo sobre o individual. Ou seja: o sentido social é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor.

O Princípio da Eticidade: Busca-se conferir maior poder ao juiz para que ele possa fundamentar a sua decisão em valores éticos.. O dado fundamental do princípio da eticidade é o "valor da pessoa humana como fonte de todos os valores".

O Princípio da Operabilidade: Por esse princípio temos que as disposições do Código Civil devem ser dotadas de realizabilidade, ou seja, efetividade, que é condição essencial das normas jurídicas que são feitas para serem aplicadas.

Conforme Carlos Roberto Gonçalves:

O princípio da sociabilidade reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana.

Com efeito, o sentido social é uma das características mais marcantes do novo diploma, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Beviláqua. Há uma convergência para a realidade contemporânea, com a revisão dos direitos e deveres dos cinco principais personagens do direito privado tradicional, como enfatiza Miguel Reale: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador.

(...)
O princípio da eticidade funda-se no valor da pessoa humana como fonte de todos os demais valores. Prioriza a equidade, a boa-fé, a justa causa e demais critérios éticos. Confere maior poder ao juiz para encontrar a solução mais justa ou equitativa. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o direito obrigacional.

Reconhece-se assim, a possibilidade de se resolver um contrato em virtude do advento de situações imprevisíveis, que inesperadamente venham a alterar os dados do problema, tornando a posição de um dos contratantes excessivamente onerosa.

O princípio da operabilidade, por fim, leva em consideração que o direito é feito para ser efetivado, para ser executado. Por essa razão, o novo Código evitou o bizantino, o complicado, afastando as perplexidades e complexidades. (...)

O bojo do princípio da operabilidade está implícito o da concretude, que é a obrigação que tem o legislador de não legislar em abstrato, mas, tanto quanto possível, legislar para o indivíduo situado. (1)

Assim, esses três princípios são os norteadores do direito civil moderno, e não podemos deixar de interpretar o caso concreto sem levar em consideração esses três princípios norteadores.

2. O novo direito contratual

Dentre as diversas subdivisões de nosso código civil, encontramos a que trata das obrigações e das obrigações em espécie, ou seja, os contratos.

2.1. Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos

Como consequência dos novos princípios que norteiam o Código Civil, também a parte contratual sofreu sérias alterações. Assim, enquanto que antes predominava-se o individualismo, onde o princípio do pact sunt servanda teria que ser cumprido a qualquer preço, independentemente dos resultados advindos para a parte mais fraca, agora devemos ponderar na hora de aplicarmos tal princípio.

Assim, vejamos como era o entendimento desse princípio antes do Código Civil de 2002, conforme Orlando Gomes:

O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com observância de todos pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente o seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para os contratantes, força obrigatória. (2)

Nessa visão tradicionalista o que prevalecia, portanto, era a força vinculante do contrato, independentemente de qualquer alteração.

Com a nossa evolução essa posição foi relativizada, sendo que o princípio do pacta sunt servanda continua sendo utilizado em nosso sistema jurídico, mas não como forma única, mas sim como regra geral, mas que poderá sofrer alterações, conforme o caso concreto.

Para Flávio Tartuce

O princípio da força obrigatória ou da obrigatoriedade das convenções continua previsto em nosso ordenamento jurídico, mas não mais como regra geral, como antes era concebido. A força obrigatória constitui exceção à regra geral da socialidade, secundária à função social do contrato, princípio que impera dentro da nova realidade do direito privado contemporâneo. (3)

2.2. Princípio da Boa-fé Contratual

Em contrapartida, com o novo código civil aparece de forma precisa e determinada o princípio da boa-fé objetiva.

Apesar de desde os primórdios já se falar em boa-fé, ela ainda não estava assente em nosso ordenamento jurídico, como aparece agora, com essa nova faceta.

Assim, o nosso Código Civil, adota a dimensão pós-moderna da boa-fé, como já se encontra previsto no art. 4º., III do CDC.

É certo que o princípio da boa-fé objetiva não pode ser analisado de forma separada do conceito do novo contrato. Nesse sentido nos ensina Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

Acerca desse novo contrato, então - instituto eternamente presente na triangularização básica do Direito Civil, ao lado da propriedade e da família - seria desejável referir, prioritariamente, às denominadas cláusulas gerais, que constituem uma técnica legislativa características da segunda metade deste século, época na qual o modo de legislar casuisticamente, tão caro ao movimento codificatório do século passado - que queria a lei clara, uniforme e precisa (...) - foi radicalmente transformado, por forma a assumir a lei características de concreção e individualidade que, até então, eram peculiares aos negócios privados. A mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a da boa-fé objetiva nos contratos. Mesmo levando-se em consideração o extenso rol de vantagens e desvantagens que a presença de cláusulas gerais pode gerar num sistema de direito, provavelmente a cláusula da boa-fé objetiva, nos contratos, seja mais útil do que deficiente, uma vez que, por boa-fé, tout court, se entende que é um fato (que é psicológico) e uma virtude (que é moral). (4)

2.2.1. Deveres Anexos

Quando se analisa o princípio da boa-fé objetiva os doutrinadores nos trazem que em decorrência desses princípios os contratantes devem se submeter a uma série de deveres anexos, laterais ou secundários, assim dentre os ensinamentos de Judith Martins-Costa e Clóvis de Couto e Silva podemos apresentar os seguintes deveres anexos:

a) dever de cuidado em relação à outra parte negocial;
b) dever de respeito;
c) dever de informar a outra parte quanto ao conteúdo do negócio;
d) dever de agir conforme a confiança depositada;
e) dever de lealdade e probidade;
f) dever de colaboração ou cooperação;
g) dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão. (5)

Para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho os deveres mais conhecidos são:

Dever de lealdade e confiança recíprocas, assistência, informação; sigilo ou confidencialidade. (6)

E ainda, segundo esses doutrinadores, apesar de serem deveres invisíveis eles são juridicamente existentes, e nos relembram que esses deveres apresentados são apenas ilustrativos não se tratando de uma lista taxativa.

Em específico iremos analisar o que vem a ser o dever de lealdade e confiança recíproco conforme tratado por Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho:

Quando se fala em deveres de lealdade e confiança recíprocas, costuma-se denominá-los deveres anexos gerais de uma relação contratual.

Isso porque lealdade nada mais é do que a fidelidade aos compromissos assumidos, com respeito aos princípios e regras que norteiam a honra e a probidade.

Ora se isso não estiver implícito em qualquer relação jurídica, não se sabe o que poderia estar.

A ideia de lealdade infere o estabelecimento de relações calcadas na transparência e enunciação da verdade, com a correspondência entre a vontade manifestada e a conduta praticada, bem como sem omissões dolosas - o que se relaciona também com o dever anexo de informação - para que seja firmado um ela de segurança jurídica calcada na confiança das partes que pretendem contratar, com a explicitação, a mais clara possível, dos direitos e deveres de cada um.

Confiança, nesse sentido de crença na probidade moral de outrem, é algo, portanto, que não se outorga por decreto, mas, sim, que se conquista justamente pela prática de uma conduta leal ou se pressupõe em uma sociedade que se pretende reconhecer como civilizada. (...)



Dever de assistência

O dever de assistência, também conhecido como dever de cooperação, se refere à concepção de que, se o contrato é feito para ser cumprido, aos contratantes cabe colaborar para o correto adimplemento da sua prestação principal, em toda a sua extensão. (7)

Na visão de Paulo Roberto Nalin o dever de cooperação nos traz que

(...) se reporta à obrigação de se facilitar o cumprimento obrigacional, com base nos critérios e limites usuais ditados pelos usos, costumes e boa-fé. A cooperação é encarada, no mais, em um duplo sentido, apesar de sua natural tendência de favorecimento ao devedor, exigindo de ambos os contratantes uma postura de solidariedade. (8)



2.2.2. Funções da Boa-fé Objetiva:



Além desses deveres o Código Civil nos apresenta, em seus dispositivos, três funções da boa-fé objetiva, vejamos:

Primeira função: Trata-se da função de interpretação do negócio jurídico, que conforme previsto no art. 113 do CC, temos que os negócios jurídicos devem ser interpretados em conformidade com a boa-fé e os usos do lugar onde ele foi celebrado. Vejamos:

Art. 113 Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

É importante ressaltar que esse dispositivo legal não deve ser interpretado de forma isolada, devendo ser feita uma interpretação sistêmica e assim, busquemos o artigo anterior que nos traz que:



Art. 112 Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem.

Para Miguel Reale o art. 113 do Código Civil deve ser compreendido como um artigo-chave já que ele faz menção tanto ao princípio da boa-fé quanto da função social do contrato.

Segunda função: Função de Controle: Essa segunda função encontra-se consubstanciada no art. 187 do Código Civil, que nos traz que:

Art. 187 Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Assim, aquele que contraria a boa-fé objetiva acaba cometendo um abuso de direito.

O Enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil nos traz que a responsabilidade civil que decorre do abuso de direito é objetiva, sendo assim, não depende de culpa.

Terceira Função: Função de Integração do Contrato: Essa função encontra-se claramente prevista no art. 422 que nos traz que

Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.



Assim, a aplicação da boa-fé se inicia já na fase preliminar - pré-negocial e se estende por toda a relação contratual. O enunciado 170 da III Jornada de Direito Civil nos traz que:

Enunciado 170 - A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.

Assim, é necessário que as partes contratantes tenham uma conduta baseada na probidade e na lealdade em todas as fases do contrato, em todos os seus momentos.

A boa-fé inclusive é um preceito de ordem pública, reconhecido pelo Enunciado 363, vejamos:

Art. 422. Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação.



Para Nelson Rosenvald (9) e Flávio Tartuce (10) a boa-fé objetiva deve ser considerado um preceito de ordem pública em decorrência da interpretação conjunta do art. 422 e o parágrafo único do art. 2.035 do CC.



3. Duty to Mitigate the loss ou Mitigação do prejuízo pelo próprio credor

O Duty to mitigate the loss que significa o dever de mitigar, foi desenvolvido pelo direito norte-americano e de uns tempos para cá tem-se tornado objeto de análise de nossos juristas, seja na doutrina e como na jurisprudência.

A fundamentação desse dever de mitigar nasce do princípio da boa-fé objetiva, onde o titular de um direito - o credor - sempre que possível - deve atuar de forma a minimizar o âmbito de extensão do dano. Evitando assim, que a situação se agrave.

Enunciado nº 169 na mesma III Jornada de Direito Civil: "princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo".



A proposta para a criação desse enunciado foi elaborada por Vera Maria Jacob de Fradera, sob inspiração do art. 77 da Convenção de Viena de 1980 no sentido de que

A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída.

A fundamentação apresentada por Vera Maria Jacob de Fradera encontra-se inserida no anexo do presente trabalho.

A ideia do dever de mitigar significa que o credor não pode querer piorar o estado do devedor, agravando assim o seu próprio prejuízo.

Conforme analisamos a base do dever de mitigar o próprio prejuízo decorre do princípio da boa-fé, onde o credor e o devedor devem agir com lealdade e confiança recíprocas.

Assim, utilizando o exemplo de Pablo Stolze (11), caso ocorra uma colisão de veículos automotores, o proprietário do automóvel que foi abalroado deverá ser indenizado por aquele que causou o prejuízo, mas imaginemos que enquanto o proprietário do veículo que gerou o ilícito - que bateu no carro foi acionar o guincho e o motorista do carro que sofreu o dano verifica que tem algumas fagulhas saindo do motor do carro, ao invés de providenciar um extintor de incêndio, deixa as fagulhas se espalharem para que o valor da indenização seja maior, e na ocorrência de perda total daquele veículo o motorista que gerou a batida deverá lhe pagar um novo carro.

Nesse caso aquele que verificou que estava iniciando o fogo deveria ter tentado contê-lo e não querer se aproveitar de um maior prejuízo. Assim, caso isso ocorra, aquele que gerou a batida não é de todo responsável pelo evento final, já que o credor contribuiu para ter o seu prejuízo aumentado.

Dessa forma, não é possível, que o credor se beneficie disso em detrimento do princípio da boa-fé, especificamente do dever anexo de lealdade e confiança recíproca e ainda o dever de assistência ou de cooperação.

A jurisprudência pátria aos poucos tem se manifestado no sentido de acolher essa construção doutrinária e assim aplicar as medidas cabíveis. Vejamos a posição do Superior Tribunal de Justiça em recente julgado:



DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO. OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR. AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO.



1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes em todas as fases. Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealdade.

2. Relações obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico.

3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor. Infringência aos deveres de cooperação e lealdade.

4. Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano.

5. Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento).

6. Recurso improvido.



(REsp 758.518/PR, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 17/06/2010, REPDJe 01/07/2010, DJe 28/06/2010)



4. Conclusão

Conforme analisamos o dever de mitigar os próprios prejuízos decorre da obrigação recíproca de lealdade oriundo da boa-fé objetiva. Isso significa dizer que o credor não pode deixar que os prejuízos sejam piores do que eles realmente deveriam ser, contribuindo para isso, nem que seja por omissão.

A preservação dos contratos deve levar em consideração que os contratantes devem agir em consonância com o princípio da boa-fé de tal sorte que as alterações decorrentes da violação desse princípio não devem ser suportadas por apenas uma das partes, mas sim, por aquela que não agiu com lealdade e cooperação.

Precisamos que esse dever de mitigar os próprios prejuízos não esteja apenas na esfera jurídica, perpassando assim, também para a esfera social de tal sorte que o princípio da operabilidade seja cumprido.

Notas:



1 - GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - vol.1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 43-44.

2 - GOMES, Orlando. Contratos. São Paulo: Editora Forense, 1996, p. 36.

3 - TARTUCE, Flávio.Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 105.

4 - Apud TARTUCE, Flávio.Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 108.

5 - Apud TARTUCE, Flávio.Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 109.

6 - STOLZE, Pablo e PAMPLONA FILHO, Rodolfo.Novo Curso de Direito Civil - Contratos. São Paulo: Editora Forense, 2010, p. 106.

7 - STOLZE, Pablo e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil - Contratos. São Paulo: Editora Forense, 2010, p. 107-108.

8 - NALIN, Paulo Roberto. Ética e boa-fé no adimplemento contratual, in repensado os fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Coord. Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Editora renovar, 1998, p. 198 APUD STOLZE, Pablo e PAMPLONA FILHO, Rodolfo.Novo Curso de Direito Civil - Contratos. São Paulo: Editora Forense, 2010, p. 109.

9 - ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p. 85-100.

10 - TARTUCE, Flávio.Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 112.

11 - Imagine que FREDIE BACANA conduz o seu carro no estacionamento da Faculdade. Em uma manobra brusca e negligente, colide com o carro de SALOMÉ VIENA. Esta última, vítima do dano e titular do direito à indenização, exige que FREDIE chame um guincho. Muito bem. Enquanto FREDIE se dirigia à secretaria da Faculdade para fazer a ligação, SALOMÉ - credora do direito à indenização - verificou que uma pequenina chama surgiu no motor do carro.

Poderia, perfeitamente, de posse do seu extintor, apagá-la, minimizando a extensão do dano. Mas assim não agiu. Em afronta ao princípio da boa-fé e ao dever de mitigar, pensou: "quero mais é que o carro exploda, para que eu receba um novo".

Neste caso, se ficar demonstrado que o credor poderia ter atuado para minimizar o dano evitável ("avoid his avoidable damages"), não fará jus a um carro novo. Apenas receberá, por aplicação do duty to mitigate, o valor correspondente à colisão inicial.

Observe, amigo leitor, a multiplicidade de situações reais em que este instituto poderá ser aplicado, a exemplo da hipótese em que o credor, beneficiado por uma medida judicial de tutela específica, podendo fornecer ao Juízo elementos concretos para a sua efetivação, prefere "rolar a multa diária", para, ao final do processo, perceber uma vultosa quantia. Se ficar demonstrado que poderia ter atuado para efetivar a medida de imediato, e não o fez, deve o juiz reduzir o valor devido, com fulcro no aludido dever de mitigar.



Autor:



Renata Malta Vilas-Bôas é Bacharel em Direito pelo Uniceub. Mestre em Direito Público pela UFPE. Advogada. Professora na graduação e na pós-graduação. Autora de diversas obras jurídicas, tanto em meio eletrônico quanto na forma impressa.





quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Nova lei seca (lei 12.760/12): perigo abstrato ou perigo concreto?


Quando estava em vigor a Lei 11.705/08, o crime era invariavelmente de perigo abstrato, mas sob a égide da nova Lei 12.760/12 ele é de perigo abstrato no caso do artigo 306, § 1º., I e de perigo concreto no caso do artigo 306, § 1º., II, CTB

Por
Eduardo Cabette - Terça Feira, 22 de Janeiro de 2013


O que efetivamente mudou no artigo 306, CTB com o advento da nova redação dada pela Lei 12.760/12. Será que toda a polêmica causada pela infeliz dicção trazida à tona pela Lei 11.705/08 pode ter um fim? Surgem novas indagações? Renovam-se antigas discussões? É o que veremos a seguir.

Há uma nítida mudança estrutural do artigo 306, CTB em termos de técnica legislativa. Pela pena do legislador de 2008 o dispositivo se compunha de um "caput" e um Parágrafo Único. No "caput" estava descrita a conduta criminosa consistente simplesmente em "conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". Por seu turno, o Parágrafo Único estabelecia que o Poder Executivo Federal iria estipular a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para fins de caracterização do crime.

Essa redação dada pela Lei 11.705/08 abandonou a anterior que fazia referência à direção sob "influência" de álcool ou de outras substâncias análogas, gerando perigo de dano. Uma reviravolta foi criada pelo legislador. Por um lado, como era a intenção da então denominada "Lei Seca" (primeira), atuou de forma a ser mais enérgico com a direção perigosa sob efeito de álcool ou outras substâncias. Isso é dito porque o crime anterior, de perigo concreto, foi convertido em infração de perigo abstrato, conforme amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência, embora não sem discussão. Mas, de outra banda, com a redação inovadora da época, a Lei 11.705/08 criou um campo de impunidade ao estabelecer que a direção perigosa por abuso de álcool somente seria comprovada por meio da constatação da concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou exame de aparelho de ar alveolar com equivalência respectiva (3 décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões). Ao erigir a concentração etílica em elemento do tipo o legislador fez com que o dispositivo ficasse sob o controle não das agências estatais de repressão e prevenção, mas do próprio infrator. É que foi olvidado o Princípio da não - autoincriminação em mais uma amnésia jurídica do Congresso Nacional. As tentativas de recuperar a funcionalidade do tipo penal foram frustradas e justamente frustradas porque sua validação com a obrigatoriedade do teste ou o desprezo do elemento do tipo seria um terrível golpe em Princípios Constitucionais tais como o Direito à não - autoincriminação e a Legalidade.

É nesse contexto que surge a iniciativa do legislativo de aprovar a Lei 12.760/12 a fim de consertar pelos meios adequados os equívocos cometidos na edição da Lei 11.705/08. O intento óbvio é retomar a técnica anterior em que não se fica atrelado a uma concentração de álcool no sangue ou no ar alveolar, mas a comprovação do estado perigoso na direção de automotores pode ser produzida por outros meios legais, com especial destaque para a prova pericial do exame clínico. Isso porque esta é uma prova conclusiva e forte com respeito à qual o indivíduo não tem como se negar a colaborar, já que sua realização independe mesmo de sua colaboração. Trata-se de um exame levado a efeito externamente por perito médico - legista e totalmente independente de colaboração do suspeito, onde não vige, portanto, a questão da não - autoincriminação.

A verdade é que no que diz respeito à parte criminal referente à embriaguez ao volante, a Lei 11.705/08 bem poderia ter sido apenas um pesadelo jurídico do qual todos acordássemos e, com aquele alívio peculiar, víssemos à nossa cabeceira o velho Código de Trânsito Brasileiro de 1997 sem qualquer alteração no artigo 306. A iniciativa de 2008 foi uma das maiores trapalhadas do Congresso Nacional.

Bem, para corrigir essa confusão a Lei 12.760/12 alterou inclusive a estrutura técnico - legislativa do artigo 306, CTB. Ele agora não se compõe somente de um "caput" e um Parágrafo Único. Há um "caput", onde a conduta criminosa é descrita com os seguintes dizeres:

"Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência".

Observe-se que o "caput" deixa de fazer referência a quaisquer níveis de concentração etílica. Passa a ser crime o simples fato de dirigir sob a "influência" de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, estando com a capacidade psicomotora alterada. Com uma dicção mais sofisticada o legislador tenta disfarçar a vergonha de ter de retomar a antiga redação de 1997 do artigo 306, CTB. Na verdade é isso mesmo, retomou-se a sistemática da velha, simples e boa "influência" de álcool ou outras substâncias, sem necessidade nenhuma de referência a índices de alcoolemia que somente trouxeram dificuldades, senão inviabilidade em determinados casos, de aplicação do dispositivo.

Outra mudança foi a exclusão da necessidade de que a conduta se processe na "via pública", passando agora a abranger também a direção em áreas privadas. Contudo, essa conclusão sobre abrangência de áreas privadas não pode ser considerada definitiva e não deve contar com acatamento unânime na doutrina e na jurisprudência, tendo em vista o disposto no artigo 1º., CTB que faz referência à sua aplicação às vias terrestres do território nacional "abertas à circulação". Isso pode levar alguns a defender a tese de que, embora não havendo indicação no tipo penal, naturalmente toda conduta prevista no CTB se refere às vias públicas. Entretanto, isso deixaria sem explicação o fato de que na parte criminal em alguns casos o legislador diz expressamente que a conduta deve ser perpetrada na via pública e em outros casos não. Por isso, entendemos que deva prevalecer a tese de que a partir da nova Lei Seca a direção embriagada passa a ser crime seja em área particular, seja em área pública, tudo dependendo apenas da avaliação do caso concreto sobre a existência de perigo na conduta do condutor.

Sinceramente, o legislador poderia ter parado por aí, simplesmente retomando a sistemática de 1997, com seu pequeno disfarce para não passar muita vergonha. Mas, ele não se contentou. Quis incluir agora na estrutura tipológica três parágrafos e dois incisos, os quais já começam a gerar controvérsias desnecessárias.

O § 1º., incisos I e II é diretamente ligado ao "caput". Esses dispositivos legais estabelecem como se constatará a alteração da capacidade psicomotora devido à influência de álcool ou demais substâncias mencionadas no "caput". Segundo a normativa enfocada tal constatação se dará por duas vias alternativas. É preciso ressaltar sempre que os incisos I e II são ligados pela conjunção alternativa "ou", de modo que devem ser interpretados separadamente, sem qualquer necessidade de integração a não ser diretamente com o "caput". Ou seja, não há necessidade, para a comprovação da alteração da capacidade psicomotora, que o agente incida nos incisos I e II, mas sim que incida no inciso I "ou" no inciso II. É claro que se houver no caso concreto incidência dupla, tanto melhor, mas isso não é exigível e muito menos imprescindível para a caracterização do crime.

Calejado pela triste experiência da Lei 11.705/08 o legislador na nova Lei Seca, embora tenha voltado a mencionar índices de alcoolemia para aferição da alteração da capacidade psicomotora no inciso I, reservou o inciso II para tratar de outros sinais também capazes de indicar a mesma alteração.

Doravante a constatação da dita alteração da capacidade psicomotora poderá ser aferida por exames e testes de alcoolemia nos termos do inciso I, que indiquem "concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar". É crime dirigir com a capacidade psicomotora alterada por álcool ou outras substâncias, mas como se afere isso? Diz o § 1º., inciso I: através de exames e testes de alcoolemia que indiquem os índices legalmente previstos. Em resumo, por meio de testes e exames de alcoolemia temos a mesmíssima sistemática então vigente quando inalterada a antiga redação dada ao dispositivo pela Lei 11.705/08. Mudou-se apenas a forma, mas o conteúdo é idêntico. Por isso, com base em toda a experiência antecedente e manifestações jurisprudenciais e doutrinárias a respeito, entendemos que na modalidade de constatação de índice de alcoolemia acima do legalmente permitido o crime segue como de perigo abstrato, nada se modificando. Observe-se que o "caput" continua como dantes não fazendo qualquer menção expressa à necessidade de perigo concreto, não há como havia antes da Lei 11.705/08, a exigência de que a conduta do agente fosse informada por perigo potencial. Não é possível esquecer que é lição sabida e consabida da doutrina que os crimes de perigo concreto descrevem no tipo a exigência desse perigo, o que não ocorre na hipótese do artigo 306, § 1º., I, CTB. Na verdade, há nesse caso a antiga presunção de perigo quando o indivíduo dirige sob efeito de álcool acima das taxas legalmente estabelecidas. Melhor dizendo, não se trata nem mesmo de uma presunção, mas de uma constatação fática, de um "fato notório", de conhecimento científico e geral, qual seja, o indivíduo que dirige sob efeito de álcool causa perigo, isso é indiscutível. O crime não é nem de perigo abstrato, mas mais especificamente de "perigo notório". Aliás, administrativamente, isso é assumido de acordo com as claras noções médicas sobre o tema, proibindo-se qualquer concentração etílica e direção de automotores. Não há índices seguros de álcool no sangue para direção veicular. Os índices explicitados na parte penal somente fazem o trabalho de separar o ilícito penal (mais grave) do ilícito administrativo (menos grave), mas em ambos os casos há ilicitude na direção sob efeito de álcool, seja acima dos patamares previstos, gerando crime, seja abaixo, ensejando responsabilidade administrativa. As eventuais margens de tolerância citadas para efeito administrativo não indicam a existência de graus seguros de alcoolemia para direção de automotores, mas apenas situações em que o índice é desprezível conforme indicações médicas. São situações em que, na realidade, a pessoa não estará com uma taxa significativa de álcool no sangue, segundo critérios médicos. Qualquer outra alegação, como, por exemplo, de que determinada pessoa pode dirigir sob efeito de dois copos de cerveja ou um copo de vinho, uma dose de uísque etc., não passa de "conversa de botequim". O fato é que não há índices seguros de álcool e direção. Não cabe ao indivíduo decidir se está ou não em condições de dirigir após beber, a questão não pode migrar do "objetivo" para o "subjetivo". Os índices de alcoolemia expostos pelo legislador desde a Lei 11.705/08 e ora repetidos não são trazidos ao campo jurídico aleatoriamente, mas têm fulcro em conclusões científicas a respeito da questão da influência do álcool nos reflexos, na capacidade de ação e reação, enfim, na capacidade psicomotora do indivíduo. São critérios científicos objetivos que jamais podem ser postos em discussão com base na subjetividade. É certo que o conhecimento científico não pode ser admitido como a única fonte do saber. Isso tem realmente sido denunciado como um ranço supersticioso do Positivismo do Século XIX. (1) Mas, daí a concluir que as constatações cientificamente embasadas podem ser postas à prova ou refutadas por um bêbado que se julga "piloto" é jogar por terra todo e qualquer critério epistemológico ou de filosofia da ciência, de modo a dar calafrios mesmo num autor como Popper para quem a refutabilidade é característica imprescindível a toda teoria com pretensões científicas. (2)

Em suma, é crime, segundo a nova redação da Lei 12.760/12, dirigir automotor sob influência de álcool de modo a estar com a capacidade psicomotora alterada. E essa alteração é constatada mediante a verificação por exame toxicológico de sangue e/ou teste de etilômetro, de concentração de álcool no sangue acima de 6 decigramas por litro ou acima de 0,3 miligramas por litro de ar alveolar. Constatadas essas concentrações, conclui-se que o agente estava com a capacidade psicomotora alterada, isso não por simples presunção, mas por constatação científica que torna esse fato notório, independendo o perigo da situação de outras provas.

É claro que essa posição ora defendida neste trabalho não será pacífica, como não o foi no caso do debate antecedente sob a égide da Lei 11.705/08. Haverá quem defenda a necessidade de perigo concreto a ser comprovado, ainda que diante da concentração de álcool acima da legalmente permitida. Aliás, já há manifestações neste sentido em meio à incipiente doutrina que se vai erigindo. Veja-se, por exemplo, o escólio de Luiz Flávio Gomes, para quem o crime do artigo 306, CTB sempre foi e sempre será de perigo concreto, dependendo de prova em cada caso, além da constatação de alcoolemia. O autor citado é frontalmente contrário a qualquer crime de perigo abstrato. Considera Gomes que essas incriminações são inconstitucionais em sua origem por violação do Princípio da Ofensividade. É claro que para autores com essa linha de pensamento é indiscutível que qualquer crime de perigo somente pode ser concreto. (3)

Inobstante a respeitável linha de pensamento, discorda-se desse posicionamento, pois que há sim condutas que já trazem em si, independente de maiores pesquisas, um perigo à coletividade. Os crimes de perigo abstrato não podem ser criados e usados pelo legislador de forma incontrolada, mas têm sim seu âmbito de validade e legitimidade, especialmente quando esse perigo que se trata como "abstrato" é, na realidade, "de notório conhecimento". Não se discorda, portanto, que o abuso dos crimes de perigo abstrato com antecipação de tutela criminal pode ser uma manifestação de um Direito Penal autoritário que atenta contra a liberdade e a dignidade humanas de forma injustificada. Mas, a conclusão de que um crime de perigo abstrato é inconstitucional não pode ser obtida de forma apriorística, sem análise do tipo penal concreto e suas repercussões sociais.

O que ocorre com a defesa apriorística do perigo concreto como inconstitucional é que aqueles influenciados por esse pensamento tendem a deslocar a discussão, que é de nível constitucional e principiológico, para a interpretação de tipos penais previstos obviamente em legislação ordinária. Partindo da premissa de que um crime de perigo abstrato é inconstitucional, então se distorce de qualquer forma possível a interpretação da legislação penal ordinária para fazer, a qualquer custo, que um crime determinado apareça como de perigo concreto, quando, na verdade, sua redação é claramente voltada para o perigo abstrato.

É exatamente o que se tem pretendido em algumas manifestações sobre o novo artigo 306, § 1º., I, CTB. Faz-se questão de não enxergar, numa verdadeira "cegueira voluntária", a conjunção alternativa "ou" que permeia os incisos I e II do referido § 1º. Esse "ou", deixa claro que a comprovação da alteração da capacidade psicomotora pode ser feita independentemente pela taxa de alcoolemia acima da permitida, não necessitando de outros sinais. Também afirmar que a alteração da capacidade psicomotora prevista no "caput" indica necessariamente perigo concreto para além das taxas de alcoolemia no caso do exame toxicológico ou de etilômetro, consiste em separar o que deve ser uno. O "caput" está ligado umbilicalmente ao § 1º. Está ligado a ele em seu inciso I "ou" II alternativamente. Mas, está sempre ligado. O "caput" não diz em que consiste a alteração da capacidade psicomotora, o que faz isso é o § 1º., em seus dois incisos, sendo que o de número I aponta para as taxas de alcoolemia, ou seja, a capacidade psicomotora estará alterada quando o indivíduo estiver dirigindo com taxas de alcoolemia acima das permitidas. É isso. É simples e claro. A alegação de que quando constatadas as taxas extrapolantes, ainda se deve perquirir se o indivíduo está com a capacidade psicomotora alterada consiste em virar o tipo penal de pernas para o ar, como se a conduta fosse descrita no § 1º., inciso I e a forma de aferição do perigo estivesse no "caput"! Ora, é justamente o contrário!

Discutir se a conformação do tipo penal, seja pela Lei 11.705/08, seja hoje pela Lei 12.760/12 no âmbito da alcoolemia fere ou não o Princípio da Ofensividade; se crimes de perigo abstrato são admissíveis no Direito Penal moderno, remete a questões de fundo que nada têm a ver com o teor da lei ordinária. Se as teses acima são defendidas, quem as defende deve então apenas dizer que o tipo penal do artigo 306, CTB, seja na forma da anterior Lei 11.705/08, seja atualmente, é inconstitucional, ao menos no seu § 1º., inciso I atual e anteriormente no seu "caput" mesmo. O que não pode ser o caminho é a distorção da redação para que esta venha a se adequar a uma linha de pensamento que não foi claramente aquela seguida pelo legislador. Isso é mais do que clarividente, pois se a Lei 12.760/12 veio a lume para impedir a onda de impunidade surgida com a redação infeliz dada pela Lei 11.705/08 é evidente que não pretenderia ser formatada de maneira a ser mais branda num verdadeiro retrocesso. A doutrina e a jurisprudência, inclusive dos tribunais superiores (STF e STJ) já haviam firmado que o crime do artigo 306, CTB, referindo-se às taxas de alcoolemia era de perigo abstrato, isso sob o pálio da Lei 11.705/08. Será que agora pretenderia o legislador retroceder numa lei que pretende ser mais rigorosa, tornando a mesma conduta crime de perigo concreto? Parece altamente implausível. Se essa vontade do legislador é constitucionalmente válida ou não é outra discussão. Mas, que o intentado é imprimir mais rigor e manter o crime de perigo abstrato neste caso, parece insofismável. Ademais, quanto à inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, embora a tese seja respeitável, não tem sido acatada pelos tribunais pátrios, especialmente pelo STF a quem cabe a última palavra em termo de constitucionalidade/inconstitucionalidade.

Neste sentido manifesta-se o Ministro Gilmar Mendes:

"Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam consigo o indesejado perigo ao bem jurídico. A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc.Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional". (4)

Será que exigir a lei que pessoas não saiam pelas ruas dirigindo veículos automotores com taxas de alcoolemia acima de 6 decigramas por litro de sangue, comprovadamente perigosas pela ciência médica, é demais? Viola a proporcionalidade? Não seria a alegação de inconstitucionalidade e de violação da proporcionalidade um excesso de suscetibilidade libertária que descamba para a libertinagem?

Na verdade, quanto à direção sob efeito de álcool em taxas acima daquelas cientificamente comprovadas como perigosas, cabe indagar: Até quando no Brasil será preciso provar o que é notório?

Passando a outra temática, mas ainda ligada às taxas de alcoolemia, importa chamar a atenção para o disposto no § 3º., do artigo 306, CTB. Esse parágrafo estabelece que "o Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo". Essa normativa apresenta-se inútil: primeiro porque a equivalência já é explicitada no artigo 306, § 1º., I, CTB pela própria lei, segundo porque também já há o Decreto 6488, de 19 de junho de 2008 que indica as mesmas equivalências ora expostas na lei. Eventualmente poderá no futuro haver alguma utilidade para esse dispositivo, acaso venha ser utilizado algum outro teste de alcoolemia diverso do toxicológico de sangue e do aparelho de ar alveolar, quando então caberá ao Contran estabelecer as respectivas equivalências. Isso significa que o artigo 306, § 1º., inciso I, CTB é autoaplicável, não se tratando de norma penal em branco.

A segunda alternativa para comprovação da alteração da capacidade psicomotora por ingestão de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência está prevista no artigo 306, § 1º., II, CTB. Fala-se então em "sinais que indiquem, (...), alteração da capacidade psicomotora". É claro que são outros sinais afora as taxas de alcoolemia. Aliás, taxas somente são previstas para o álcool. Para outras substâncias lícitas ou ilícitas, também alteradoras da capacidade psicomotora não há previsão de índices, sendo então a única alternativa comprobatória a do inciso II. É claro que não se descarta, mesmo em relação a outras substâncias, a realização de exames de sangue, urina etc., mas fato é que não há previsão legal de taxas específicas como há no caso do álcool. Isso não impedirá que as Autoridades Policiais, os Promotores, Juízes e Defensores em geral proponham aos peritos a resposta a quesito que informe se o índice de substância no corpo do suspeito é passível de prejudicar sua capacidade psicomotora, o que deverá ser respondido caso a caso. Certamente o legislador não quis tentar fazer o trabalho impossível de catalogar índices para todas as substâncias alteradoras do psiquismo, além do álcool. Esse seria mesmo um intento inviável, já que a redação dada ao artigo 306, "caput", CTB é aberta, de forma a abranger o álcool e quaisquer outras substâncias que alteram o psiquismo do agente, sejam elas drogas ilícitas ou mesmo medicamentos.

Neste inciso II realmente se está diante de um crime de perigo concreto. Se a prova não é possível através do teste ou exame de alcoolemia e deve ser então obtida pela segunda alternativa disposta na lei, há que se demonstrar objetiva e concretamente quais são os tais "sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora". Não há como pensar aqui em perigo abstrato, pois a exigência da indicação desses "sinais" já está a exigir o perigo concreto.

Conclui-se, portanto, que quando do vigor da Lei 11.705/08 o crime era invariavelmente de perigo abstrato, mas sob a égide da nova Lei 12.760/12 ele é de perigo abstrato no caso do artigo 306, § 1º., I e de perigo concreto no caso do artigo 306, § 1º., II, CTB.

E neste inciso II caberá à acusação indicar quais são os sinais indicativos de perigo concretamente existente, porque demonstram a alteração da capacidade psicomotora do condutor. Não há aqui uma taxa que já nos oferta resposta pronta. É preciso perquirir esses sinais que podem ser o andar cambaleante, a fala pastosa, a agitação, a depressão, o sono ao volante, a falta de concentração, a consciência alterada, a direção em descontrole, a falta de coordenação motora ou sua deficiência etc.

É neste inciso II que está o conserto da trapalhada providenciada pela Lei 11.705/08. Agora, se o condutor se nega, usando de um direito constitucional seu, a submeter-se a exames de sangue ou de etilômetro, nada impede sua prisão em flagrante, seu processo e condenação com base em outras provas, dentre as quais se destaca aquela que sempre foi a protagonista nestes casos, qual seja, o exame clínico de embriaguez levado a efeito pelo Médico - Legista. Foi somente durante o triste período de vigência da redação dada pela infeliz Lei 11.705/08 que o exame clínico perdeu boa parte de sua imensa funcionalidade. Agora a Lei 12.760/12 revitaliza o exame clínico (Antes tarde do que nunca!). Finalmente, retorna para as agências estatais o controle sobre a punição do infrator. Não é mais o próprio suspeito que irá decidir se haverá produção de provas contra si. São as agências estatais que irão produzir as provas necessárias através de exames, testes ou outros meios legais que independem da colaboração do indigitado.

Também neste inciso a lei faz referência à disciplina da aferição desses sinais indicadores de alteração psicomotora pelo Contran. Entretanto, não se trata de norma penal em branco já que a própria lei (artigo 306, §2º., CTB) estabelece os meios que podem ser utilizados para a comprovação do estado de alteração psicomotora, tratando-se, portanto, também de norma autoaplicável. Diz o artigo 306, § 2º., CTB:

"A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova".

Referências
GOMES, Luiz Flávio. 6 Decigramas de álcool já significam crime? Ou não? Disponível em www.jus.com.br , acesso em 29.12.12.
GUILLEBAUD, Jean - Claude. A força da convicção - Em que podemos crer? Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

HENRY, Michel. A Barbárie. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: É Realizações, 2012.
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas Hegenbert e Octanny Silveira da Mota. 9ª. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle. A nova aliança: a metamorfose da ciência. Brasília: UNB, 1986.
as:
1 - PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle. A nova aliança: a metamorfose da ciência. Brasília: UNB, 1986, "passim". HENRY, Michel. A Barbárie. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 49. GUILLEBAUD, Jean - Claude. A força da convicção - Em que podemos crer? Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 129.
2 - POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas Hegenbert e Octanny Silveira da Mota. 9ª. ed. São Paulo: Cultrix, 2001, "passim".
3 - Cf. GOMES, Luiz Flávio. 6 Decigramas de álcool já significam crime? Ou não? Disponível em www.jus.com.br , acesso em 29.12.12.
4 - HABEAS CORPUS 104.410, RIO GRANDE DO SUL, 2ª. Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, v.u., 06.03.2012.


Autor:

Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal.

Palavras-chave
nova lei seca, perigo abstrato, perigo concreto, código de trânsito brasileiro (Conjur)
Penalidade proibida


Escola não pode reter documentos de aluno inadimplente

Reter documentos referentes à vida escolar de aluno inadimplente com o intuito de compelir a quitação das dívidas é conduta proibida. O entendimento é da juíza Maria da Glória Reis, da 19ª Vara Cível de Belo Horizonte, que mandou um colégio entregar a um aluno o seu histórico escolar, independentemente da existência de débitos em aberto. Cabe recurso.

De acordo com a juíza, a decisão tem respaldo no artigo 6º da Lei 9.870/99, que dispõe sobre anuidades escolares. “São proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento”.

Ela afirmou também que a instituição de ensino deve buscar outros caminhos para a satisfação de seu crédito. “O fato de o aluno possuir débitos junto à instituição não autoriza à escola a retenção de quaisquer documentos referentes à vida escolar do aluno, no intuito de compeli-lo a quitar seus débitos”.

Com informações da Assessoria de Imprensa do Fórum Lafayette



Processo: 3047888-82.2012.8.13.0024



Revista Consultor Jurídico, 22 de janeiro de 2013


Direito na Europa


Metade dos escritórios ingleses faz marketing na internet
Por Aline Pinheiro

Na Inglaterra, uma pesquisa divulgada semana passada revela que 64% dos escritórios de advocacia investem em publicidade para alavancar seus serviços. O meio mais procurado é a internet. Mais de metade das firmas que fazem marketing jurídico – 54% – prefere a propaganda online e outras 30% optam por anúncios em jornais e revistas. A pesquisa foi feita pelas entidades que regulamentam a advocacia na Inglaterra em conjunto com o Ministério da Justiça. Foram ouvidos 20% dos escritórios do país.

Mercado das leis

O alto percentual de firmas inglesas que investem em publicidade não é nenhuma surpresa. Na Inglaterra, a advocacia é vista como um negócio e o marketing é levado a sério. Os escritórios grandes pagam propaganda na televisão em horário nobre. Aqueles que não podem mandam mala direta e disparam mensagens em celulares aleatórios em busca de clientes.

Preço da vida (1)

A semana passada terminou em prejuízo para a Ucrânia. O país foi condenado a pagar 445 mil euros (R$ 1,2 milhão) de indenizações por falhas da Polícia e da Justiça. A Corte Europeia de Direitos Humanos condenou o governo ucraniano a indenizar a mãe de um soldado que se suicidou depois de sofrer bullying de um sargento. Ela deve receber 20 mil euros. O tribunal também determinou que a o governo pague 25 mil euros para cada um dos 17 presos que foram torturados depois de organizar uma greve de fome. Clique aqui e aqui para ler as decisões em inglês.

Preço da vida (2)

As condenações impostas à Ucrânia saíram dez dias depois de o país ser repreendido pela falta de independência do seu Judiciário. A Corte Europeia de Direitos Humanos reconheceu que a Justiça ucraniana sofre pressões políticas e interferência dos outros Poderes e precisa urgentemente ser reformada. Clique aqui para ler mais.

Conflitos na África

O Tribunal Penal Internacional vai investigar crimes de guerra cometidos na República do Mali em conflitos armados desencadeados em janeiro do ano passado. A procuradora chefe do TPI, Fatou Bensouda, oficializou na semana passada a abertura das investigações. Foi o próprio governo do Mali que pediu a intervenção do tribunal para apurar os responsáveis pelos massacres.

Justiça aberta

Depois de aderir ao Twitter, a Suprema Corte do Reino Unido agora está também no YouTube. O tribunal acaba de anunciar seu canal no site. A ideia é publicar versões resumidas dos julgamentos, que começaram a ser transmitidos ao vivo em 2011. Os 25 julgamentos do semestre passado já estão disponíveis no novo canal no YouTube. Clique aqui para acessar.



Aline Pinheiro é correspondente da revista Consultor Jurídico na Europa.



Revista Consultor Jurídico, 22 de janeiro de 2013