quarta-feira, 11 de maio de 2011

ACÓRDÃO SOBRE DOAÇÃO À IGREJA UNIVERSAL

Órgão : 1ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS DO DISTRITO FEDERAL

Classe : ACJ

Processo Número : 2007.09.1.022199-3

Apelante : IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

Apelado : LÍVIA INÁCIA DE ANDRADE

Relator (a) : SANDRA REVES VASQUES TONUSSI



E M E N T A

PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. DEVIDO PROCESSO LEGAL. ÔNUS DA PROVA. DOAÇÃO. NULIDADE. ART. 548 DO CC. RECURSO IMPROVIDO.

1. Observado o devido processo legal, o julgamento pela procedência do pedido que acolhe a fundamentação da parte autora não implica, por evidente, em afronta ao contraditório ou à ampla defesa da parte ré.

2. O ônus da prova[6] incumbe ao Réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, a teor do inciso II do art. 333 do CPC. Cumpriria à parte ré demonstrar que a parte autora possuía ao tempo da doação outro bem que não o veículo doado. Nada há nos autos que demonstre tal alegação. Testemunho de que a autora possuiria bem imóvel é prova inadequada ao fim colimado, porquanto para tanto a prova documental é exigência legal. Acresce a tal quadro que o depoimento sequer consta dos autos, impedindo a análise pela Turma Recursal, que é condicionada à transcrição completa pelo recorrente dos atos oralmente produzidos e gravados, na forma do art. 44 da Lei n. 9.099/95.

3. Se não há prova nos autos de que a doadora Lívia Inácia de Andrade - mãe de uma criança portadora de necessidades especiais, com precária situação financeira e recente histórico de grave violência doméstica - possuía outro bem além do veículo automotor doado à ora recorrente Igreja Universal do Reino de Deus, a par da possível identificação de vício na manifestação de vontade pelo falso motivo determinante do negócio, decorrente da promessa de “mudança de vida” com a doação integral do já diminuto patrimônio da doadora conforme regra do art. 140 do Código Civil, a clara disposição do art. 548 do Código Civil, cuja “inspiração é de ordem moral”[7] e tutela a dignidade do doador, determina como nula de pleno direito a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador[8]. O art. 549 igualmente reputa como nula a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.

4. Com efeito, Pontes de Miranda já advertia que “a ordem jurídica protege os interesses dos membros da comunidade, enquanto entre si se harmonizam e coexistem; isto é, protege-os enquanto são dignos de proteção e necessitados dela”[9]. Ainda sobre a eticidade como fundamento das normas civis merece ser destacada a lição de Judith Martins e Gerson Branco: “(...) se em primeiro plano está a pessoa humana valorada por si só, pelo exclusivo fato de ser pessoa, - isto é, a pessoa em sua irredutível subjetividade e dignidade, dotada de personalidade singular e por isso mesmo titular de atributos e de interesses não mensuráveis economicamente -, passa o Direito a construir princípios e regras que visam a tutelar essa dimensão existencial, na qual, mais do que tudo, ressalta a dimensão ética das normas jurídicas. Então o direito civil reassume a sua direção etimológica e do direito dos indivíduos passa a ser considerado o direito dos civis, dos que portam em si os valores da civilidade.[10]”

5. Recurso conhecido e improvido. Sentença mantida com súmula de julgamento servindo de acórdão, conforme o art. 46 da Lei n. 9.099/95. Determinado o encaminhamento de cópia dos autos ao Ministério Público para análise de eventual ilícito penal. Condenado o recorrente ao pagamento das custas e



________________________________________

[1] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 253.

[2] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 254.

[3] Carlos Roberto Gonçalves, faz uma ressalva quanto a ser somente unilateral, ou seja, como regra o contrato de doação é unilateral, porém, esse doutrinador entende que pode vir a ser classificado como bilateral quando se tratar de doação modal ou com encargo. Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.III. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 257.

[4] Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.III. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 254.

[5] NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 550.

[6] Sobre as regras do ônus da prova destaco a pertinente observação de Didier Jr., Braga e Oliveira(DIDIER Jr, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, volume 2: Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 4ª ed. Bahia: Editora JusPodivm, 2009, p. 76.):

“As regras do ônus da prova não são regras de procedimento, não são regras que estruturam o processo. O ônus da prova é regra de juízo, isto é, de julgamento, cabendo ao juiz, quando da prolação da sentença, proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus da prova e dele não se desincumbiu.”

Os renomados autores ressaltam a lição de José Carlos Barbosa Moreira (MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Julgamento e ônus da prova”. Temas de Direito Processual Civil – segunda série. São Paulo, 1988, p. 74-75 apud ob. cit. em a nota 3, p. 73-74):

“Explica o ônus subjetivo, BARBOSA MOREIRA: ‘O desejo de obter a vitória cria para a litigante a necessidade, antes de mais nada, de pesar os meios de que se poderá valer no trabalho de persuasão, e de esforçar-se, depois, para que tais meios sejam efetivamente utilizados na instrução da causa. Fala-se, ao propósito, de ônus da prova, num primeiro sentido (ônus subjetivo ou formal).

E segue comentando o ônus objetivo: ‘A circunstância de que, ainda assim, o litígio deva ser decidido torna imperioso que alguma das partes suporte o risco inerente ao mau êxito da prova. Cuida então a lei, em geral, de proceder a uma distribuição de riscos: traça critérios destinados a indicar, conforme o caso, qual dos litigantes terá de suportá-los, arcando com as conseqüências desfavoráveis de não se haver provado o fato que lhe aproveitava. Aqui também se alude a ônus da prova, mas num segundo sentido (ônus subjetivo ou material)’”



[7] Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República – vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 548.

[8] Sobre a matéria o claro acórdão do e. TJDFT de relatoria da Exma. Desembargadora Nídia Corrêa Lima: “CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE VALIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO. DOAÇÃO DE TODO O PATRIMÔNIO. VALOR SUPERIOR QUE PODERIA SER DISPOSTO EM TESTAMENTO. NULIDADE. 1. NOS TERMOS DO ARTIGO 1.175 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916, "É NULA A DOAÇÃO DE TODOS OS BENS SEM RESERVA DE PARTE, OU RENDA SUFICIENTE PARA A SUBSISTÊNCIA DO DOADOR".2. NULA É A DOAÇÃO NOS CASOS EM QUE A DOADORA, MESMO DIANTE DA EXISTÊNCIA DE HERDEIRO, DISPÕE DE QUANTIA SUPERIOR ÀQUELA PERMITIDA PARA AS HIPÓTESES DE TESTAMENTO, CONFORME DISPOSTO NO ART. 1.176 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916, EM VIGOR À ÉPOCA CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO. 3. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.” (2008 09 1 006426-5 APC - 0006426-54.2008.807.0009 (Res.65 - CNJ) DF; Registro do Acórdão Número : 326771; Órgão Julgador : 3ª Turma Cível; DJ-e: 23/10/2008 Pág. : 63)

[9] PONTES DE MIRANDA apud MARTINS COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo, Atlas, 2008, p. 57

[10] MARTINS COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luis Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 132.



Nenhum comentário:

Postar um comentário